A romantização da maternidade: uma máquina de culpa, invisibilidade e adoecimento
- Psicóloga Maiumi Souza
- 14 de out.
- 5 min de leitura
Atualizado: 19 de out.

Romantizar é transformar algo complexo em uma história que é só fácil e bonita. Não é comemorar, é mostrar só o lado bom e esconder o que dói. Na maternidade, isso cria uma imagem tentadora e cruel: a mãe perfeita, sempre presente, paciente, feliz, com amor infinito e sem cansaço. Parece bonito, mas serve para controlar. Serve para controlar porque cria um padrão inalcançável, quando a maternidade é retratada apenas como plenitude e doçura, as mulheres que sentem ambivalência, raiva ou exaustão passam a se sentir erradas. Também produz culpa e silêncio, fazendo com que muitas escondam seus sentimentos reais e deixem de pedir ajuda. Mantém estruturas desiguais, porque sustenta a ideia de que cuidar é um destino natural das mulheres, perpetuando a sobrecarga e a solidão materna. E, ao disfarçar a dor com o mito do amor incondicional, impede transformações sociais, já que o sofrimento é visto como falta de amor, e não como consequência de um sistema que exige demais e apoia de menos. Quando um ideal toma o lugar da realidade, alguém acaba sofrendo e, quase sempre, é a mãe.
O que é romantização, de fato
Romantização é um processo cultural de idealização. Ele opera três movimentos. Primeiro, apaga a ambivalência afetiva que é constitutiva do cuidado. Segundo, transforma virtudes em obrigações morais. Terceiro, converte problemas estruturais em falhas individuais. O resultado é um mito funcional ao status quo: se a mãe sofre, a explicação é que ela não é suficientemente dedicada. Não entram na conta sono interrompido, carga mental, desigualdade de gênero, ausência de rede, precarização do tempo.
Há décadas a literatura já denuncia esse mito. Elisabeth Badinter questiona o “amor materno” como destino natural. Donald Winnicott lembra que basta ser suficientemente boa, não perfeita. Alexandra Sacks descreve a matrescência como transição de desenvolvimento, com perdas e ganhos reais. A romantização ignora tudo isso e vende um script linear onde quem ama não se cansa, quem cuida não se irrita, quem gesta não se entristece.
Ideal versus real
No ideal, a maternidade é um estado. No real, é um trabalho relacional que exige corpo, psique, rede e tempo. No ideal, o bebê regula a mãe pelo amor. No real, é a mãe que regula o bebê, muitas vezes em privação de sono e subcarga. No ideal, instinto resolve. No real, há aprendizagem, erro, ajuste fino e contexto.
A ambivalência não é defeito de caráter. É um dado da vida psíquica. Amar e querer distância no mesmo dia. Chorar de exaustão e sorrir de orgulho no mesmo minuto. Quando chamamos isso de “contradição”, esquecemos que a vida é ampla. Quando chamamos de “falha”, produzimos culpa.
Por que é inatingível
O ideal é móvel. Cada conquista gera um novo padrão de exigência. Amamenta? Então precisa ser exclusiva e prazerosa. Brinca? Então precisa ser didática e sempre criativa. Trabalha? Então precisa performar alta produtividade com zero impacto no cuidado. Não trabalha? Então precisa justificar utilidade social. Essa régua vai mudando e nunca fecha. É um jogo de soma negativa para as mulheres.
Além disso, o ideal é descontextualizado. Ele compara a sua vida real com recortes editados de outras vidas. Ignora renda, suporte, saúde, trauma, raça, configuração familiar. Pede resultados de primeiro mundo sem políticas públicas de primeiro mundo. É por isso que muitas mães relatam sensação de incompetência crônica mesmo fazendo muito.
A fábrica de culpa
A culpa nasce do hiato entre norma e experiência. Quando a norma é irreal, a culpa é inevitável. E ela se multiplica por três mecanismos.
Auto-vigilância. A mãe monitora o próprio afeto como se houvesse emoções permitidas e proibidas.
Comparação social. A régua do outro vira critério de valor pessoal.
Individualização do fracasso. O que é estrutural vira moral. Não falta creche, falta “organização”. Não falta rede, falta “jeito”. Não faltam horas de sono, falta “resiliência”.
A culpa não melhora o cuidado. Paradoxalmente, o piora, porque consome energia psíquica, restringe pedido de ajuda e produz hiperexigência que desemboca em irritabilidade, retraimento e sensação de solidão.
Como a romantização adoece
Ela faz três danos clínicos frequentes.
Atraso na busca por ajuda. Sintomas de depressão, ansiedade, TOC perinatal e trauma são normalizados ou escondidos para preservar a “boa mãe”.
Aumento da ansiedade de desempenho. O cuidado vira prova diária. O sono do bebê vira KPI (Key Performance Indicator). O corpo vira projeto. A casa vira vitrine. O vínculo vira medição.
Colapso identitário. A mulher perde o direito à pessoa inteira. A maternidade ocupa todos os lugares. Onde não há espaço para a pessoa, o sintoma aparece para falar.
Sinais de atenção que pedem avaliação profissional rápida: humor deprimido na maior parte do dia por pelo menos duas semanas, anedonia, desesperança, crises de ansiedade recorrentes, pensamentos intrusivos persistentes e angustiantes, irritabilidade que fere vínculos, ideação de autoagressão, sensação de estar “desaparecendo” ou “fora do corpo”, medo intenso de fazer mal ao bebê contra a vontade. Validar sentimentos é necessário. Avaliar a forma, a frequência e o prejuízo é cuidado.
Camadas invisíveis: política, classe, raça e rede
A romantização é seletiva. Ela exige super-mães e invisibiliza babás, avós, creches, políticas de licença, além de impactar de modo desigual mulheres pretas, periféricas, migrantes e mães solo. Sem nomear essas camadas, atribuímos ao afeto o que é falha de estrutura. Amor não substitui política pública. Cuidado não se sustenta só com vontade.
Desmontar o mito é uma questão ética
Desromantizar não é negar beleza. É retirar a maquiagem para que a pele respire. É substituir fantasia por linguagem. É uma ética da realidade que permite alegria possível em vez de felicidade obrigatória. Alguns movimentos práticos ajudam.
Régua boa o bastante. Trocar perfeição por presença possível. Lembrar Winnicott: reparar faz parte do amor.
Plano de puerpério. Antes do parto, desenhar rede de cuidado, turnos de sono, logística de alimentação, tarefas domésticas, tempo de banho e tempo de silêncio. O amor precisa de calendário.
Divisão explícita do trabalho. Carga mental não é intuição feminina. É trabalho cognitivo. Listas visíveis, responsabilidades inteiras, não “ajudas”.
Linguagem que amplia. Nomear ambivalências em voz alta. Dizer “eu te amo e estou cansada”. Dizer “eu preciso de pausa”. Dizer “hoje foi difícil”. Linguagem organiza mundo interno.
Curadoria de tela. Reduzir comparações performáticas. Seguir vozes que falam de maternidade real. Pausar perfis que acionam dívida moral.
Ritmos do corpo. Puerpério é neuroendócrino. Sono, alimentação, movimento e exposição ao sol não resolvem tudo, mas protegem muito.
Círculos e clínica. Conversar com outras mães muda a narrativa de “só eu” para “nós”. Sinais persistentes pedem avaliação especializada. Tratamento é cuidado, não fracasso.
O lugar do amor quando cai o filtro
Quando a romantização cai, o amor fica mais denso. Sai da vitrine e volta para o vinculo. Amor deixa de ser prova e vira prática. Não promete que não doerá. Promete que, quando doer, haverá linguagem, rede e método. A maternidade, então, deixa de ser pedestal e volta a ser relação.
No fim, a pergunta não é como alcançar o ideal. É como sustentar o real sem se perder. A resposta passa por três verbos que cabem no bolso: reconhecer, redistribuir, reparar. Reconhecer o que é humano. Redistribuir o que é trabalho. Reparar quando falhamos. É assim que tiramos a maternidade do altar e a devolvemos à vida. Onde pode, enfim, existir sem adoecer.
Referências
BADINTER, Elisabeth. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
WINNICOTT, Donald W. A criança e seu mundo. 7. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2005.
SACKS, Alexandra; BIRNDORF, Catherine. What no one tells you: A guide to your emotions from pregnancy to motherhood. New York: Simon & Schuster, 2019.



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